Friday, December 28, 2007

Uma visita ao hospital local.

Vencida a minha teimosia em ir ao médico, acordo com a mensagem da mana Cata combinando passar em minha casa para me acompanhar à Clínica. Como acontece em quase todos os lugares de Dili encontramos à porta da Clínica um amigo. Não se dá um passo sem que se encare alguém conhecido.
Bom, relatando os meus sintomas ao médico o mesmo diz-me ser necessário fazer análises ao sangue. Escreve na requisição suspeita de dengue e solicita um CBC e teste ao Dengue. Informa-me que para realizar a recolha de sangue e a sua análise deverei ir ao laboratório nacional que fica no Hospital Público Guido Valares. Lá vamos nós, eu e mana Cata, atravessamos a cidade com a minha face cada vez mais pálida. Entramos num bairro habitado por timorenses e encontramos a entrada do hospital circundada pelas bancas comerciais. Sendo certo que esta é a minha primeira experiência num hospital público num país subdesenvolvido, não poderei compará-lo nem dizer que é muito mau. Afinal como serão os hospitais de países como Sudão, Ruanda, Etiópia e outros que tais?
De todo em todo, o facto é que o hospital é composto por vários pavilhões de paredes velhas, sujas e deterioradas, com janelas ainda mais sujas e rachadas.
Tentamos encontrar o edifício principal para perguntar onde é o laboratório. Ao entrarmos num dos edifícios percebemos que se pode morrer ali facilmente de tudo menos da maleita pela qual lá entramos. Os profissionais de saúde não falam tetúm nem português, e inglês sabe Deus. Uma grande maioria são cubanos e por isso mesmo lá arranhamos nós o espanhol para que nos indiquem o sentido do laboratório. Os consultórios e as enfermarias são dois em um e os corredores também vão servindo. Bem, dir-me-iam os portugueses, mas nós também temos disso em Portugal! Certíssimo! Mas não a este nível em que os doentes e a família dos mesmos se encontram todos no mesmo local, com portas abertas e em que todos os que precisam disto e daquilo se deslocam por ali. As paredes estão manchadas de sujidade, não há ar condicionado a funcionar devidamente, num país em que a temperatura média durante o dia é de 32 graus. Os espaços exíguos estão apinhados e nós vamos perguntando às pessoas de bata semi-branca onde é o laboratório. Ninguém percebe! Vamos percorrendo os corredores e enfermarias, e os doentes e suas famílias, todos eles timorenses, olham para nós com ar curioso. Afinal que fazem ali duas malaes sem bata?? Chegamos a um corredor ao ar livre que leva a outros edifícios e finalmente deparamo-nos com um médico que nos compreende entre o espanhol e o inglês. Toda esta descrição é pobre demais para a imagem do hospital. Chegadas ao laboratório falo na pseudo recepção, onde se encontram dois timorenses. Peço para chamar uma senhora que supostamente é responsável. A senhora aparece, cumprimenta-me, profere algumas palavras aos timorenses, vira costas e vai embora. Não percebi bem o que se passou, mas, ali mesmo, ao lado da pseudo recepção está uma cadeira, daquelas usadas para recolha de sangue, uma mesa com agulhas (graças a Deus em invólucro) uma caixa de algodão exposto ao ar, um garrote cor de terra, não obstante ser originalmente branco, e um syringe disposer. O homem da recepção sai de luvas infectas calçadas, acompanhado pelo seu fiel companheiro. Trocam entre eles umas palavras em tétum, que eu confesso não ter compreendido, dirigem-se a mim e pedem-me para sentar.
“-Desculpe, mas não é o senhor que me vai tirar sangue, pois não??” “Catarina, eu não tiro sangue com este senhor” “Mas o senhor sabe tirar sangue???” Sou completamente ignorada pelo homem que começa o ritual de pegar na seringa e no algodão. A luva dele é tão suja que não quero que me toque. Elevo a voz e digo que não quero que seja ele a tirar-me o sangue. O homem continua a ignorar-me e o outro ri-se. Vejo-o a aproximar-se do meu braço e entro em total pânico. A Catarina põe-me a mão no ombro e diz-me para ter calma. CALMA!!!!! O homem é o recepcionista. Sou absolutamente ignorada, a Catarina diz-me que o homem deve saber o que faz, mas a verdade é que até o semblante dela confirma as minhas suspeitas. O homem é o recepcionista que, à falta de recursos humanos, aprendeu a tirar sangue e foi praticando nos timorenses que por ali passam. Ali mesmo, naquele corredor decadente, rodeada pelos três, que respiram pesadamente sobre mim, face o extremo calor que se faz sentir, vejo o meu braço apertado por um garrote infecto, o local onde se encontra a veia limpo por um algodão exposto, local esse novamente infectado por um dedo indicador sujo, pois a luva de latex (também suja, de resto) que o homem usava tinha o dedo indicador cortado. O homem não faz grande esforço para verificar onde está a minha veia, e num jeito de lançador de dardos, espeta-me a agulha que naturalmente falha a veia. Escarafuncha um pouco para encaixar a agulha na veia e finalmente o sangue jorra para o tubo. Percebo a preocupação da Catarina, que sendo analista, entre muitas outras profissões, diz ao homem ser necessário mais sangue. O homem também a ignora. Retira a agulha e coloca um algodão sem mais. Os tubos não estão identificados e a Catarina, com um dedo a comprimir o algodão que está no meu braço e o outro a apontar para os tubos, ralha com os homens para que ponham correctamente o meu nome em cada tubo.
Não há pensos para substituir o algodão. Levanto-me, pálida, creio eu. E já sem nada para dizer. O momento tinha passado e eu experimentei um dos serviços de saúde de um hospital público de um país subdesenvolvido. Os resultados estariam prontos às três da tarde.
Não havia reagente para o dengue mas as plaquetas sanguíneas estavam normais, o que indicia em principio - dengue free.

Pensando agora friamente sobre o episódio percebo que foi um pequeníssimo momento com pouca gravidade, mas não deixa de ser uma pequena amostra do que de muito grave se pode passar noutros serviços de saúde.