Sunday, November 25, 2007

Eliza

Caminho acompanhada pela minha professora de tétum (chamar-lhe-ei Eliza –personagem do livro de aprendizagem) por entre ruelas e carreiros estreitos ladeados de kolan (valetas fundas por onde correm águas pluviais e outras) que exalam um cheiro nauseabundo. Eliza vai-me mostrar casas, disse-me conhecer casas para arrendar. Eliza que aparenta ser uma muito jovem adolescente, pelo ar e fisionomia pueril, pela expressão amedrontada no rosto e pelo seu sorriso nervoso cada vez que vai contando algum acontecimento, é mãe de uma bebé de 9 meses. Na verdade Eliza tem 23 anos. Eliza tira da sua carteira duas fotografias e mostra-me orgulhosamente a sua filha. Sempre que estou sem o senhor Francisco e tenho aula, Eliza e eu caminhamos juntas para os nossos destinos. O meu é quase sempre o hotel para consultar o meu e-mail e Eliza vai para a Universidade ou para o seu serviço. E nestas caminhadas vamo-nos conhecendo. Ela faz-me a mesma pergunta muitas vezes: “- senhora tem Tauk (medo)?”
“Lae (não)!” respondo. E prossegue a contar os acontecimentos mais sanguinários que ocorreram nos últimos dias. Depois à medida que passamos em casas ou outros locais fala-me das atrocidades ocorridas durante a ocupação indonésia, de 99 e da crise de 2006. E sinto que isto que me conta é um segredo que não sendo meu me impele a não divulgar. Sinto que todos os relatos que tenho ouvido são um segredo. Mas não o deviam ser. Ela relata-me os factos e termina com um riso fino e esganiçado. E só compreendo esse riso por puro nervosismo, porque em tudo que me conta é impossível vislumbrar qualquer centelha de diversão.
99 foi há oito anos atrás! Há pouco mais de oito anos os timorenses foram torturados e assassinados. Estes são os factos, uma crua e triste realidade para este povo e para a Humanidade, porque a Humanidade não pode fechar os olhos ao assassínio da sua espécie.
E não obstante a violência que sofreram, ou até por causa dela (os psicólogos lá palpitarão), eles próprios lançam mão da violência tão gratuitamente que é quase assustador. O apedrejamento, o desmembramento à catanada e a violência doméstica é praxis. Eu falo com a Eliza sobre o assunto e ela lança o seu riso nervoso. Eliza fala-me da sua filha e das suas rotinas. Eliza é franzina, muito franzina, deixando-nos estupefactos com a imagem da gravidez e da maternidade.
Eliza, como o senhor Francisco, grew on me. Com todas as precauções que uma malae deve tomar quanto a confiar.
Não, eu não tenho medo. De facto não tenho. Penso em tudo que ouço, no que vai acontecendo mas não tenho medo de aqui estar. E quando me sinto mais só ligo a um dos dois amigos que fiz.
Daqui a pouco José vem e eu, entre outras coisas, poder-lhe-ei contar tudo o que ouvi e até também indicar-lhe os locais, como me fizeram. Depois virá o Rui, o Rodolfo e a Lígia e poderei dizer-lhes e mostrar-lhes o mesmo.
José levará com ele tudo que ouviu de mim e do senhor Francisco e quem sabe uns presentes de Natal. Afinal o Natal avizinha-se e eu estarei aqui, longe do bulício das compras natalícias de última hora, dos telefonemas e sms que entopem o telemóvel. Já agora o meu número de telemóvel é o timorense, aquele que vocês já têm.

2 comments:

Anonymous said...

É um misto de encanto e apreensão quando termino de ler os teus post's!! Assassínios e turturas?! No meio de algo que ao mesmo tempo parece ser o local mais idílico do mundo?! A sua capacidade de observação e de neutralidade no meio do caos aparente é devreas fabuloso. beijinhos
Rudi

Anonymous said...

Bem, amiga...De facto, por entre histórias de encantar, é que nos damos conta da realidade.
A herança trágica das lembranças e a mágoa dos que partilham agora esse acervo de horrores, certamente demorará a transformar-se em algo verdadeiramente novo, sem essa ligação visceral doentia. A exigência de um novo bem, isento de ressentimentos, torna-se um ideal para quem, de longe, assiste a todo o cenário de reconstrução. Porém, protegido da atmosfera que contagia os sentidos e desperta as paixões, esse ideal desejado soa-me a mera palavra escrita, oca de uma estrutura sustentável, compreensível apenas por quem a experiencia.
A imagem de Eliza é a imagem de um Povo atemorizado e desesperado por uma nova realidade, de paz real e não meramente simbólica.
Sinto ainda muita dificuldade em compreender a real situação e penso que dificlmente terei, alguma vez,esse discernimento. Espero que, com muita brevidade, te possa visitar...aí sim, poderei ter a pretensão de escutar atentamente, com os ouvidos da alma, a verdadeira história de vida...pelo menos um pedaço da ponta do iceberg...mts beijos deste friend que muito te estima.RAL